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Havia nele um incomodo qualquer, indefinido, um desgaste no espírito que se somava ao
desgaste do corpo. Ele resolveu buscar algum prazer intelectual e ponderou um pouco sobre aquilo
que ia fazer. Talvez fosse mexer em feridas abertas ou mal cicatrizadas. Talvez fosse inflar o ego
com a solução fácil de algum problema. A simples leitura de um bom livro de 500 páginas de
filosofia, economia, história ou literatura ia ativar o seu modo reflexivo e mil conexões poderiam
surgir em sua mente inquieta. Cada frase, sem sentido ou com sentido, ia adquirir um novo
significado para o aqui e agora em que vivia. Desencadearia um turbilhão de possibilidades mal
compreendida por interlocutores à distância e hiperocupados.
Consultou a sua breve lista de resoluções para 2024. Lá tinha uma receita de sensatez,
pessoal e intransferível, sobre o que devia fazer nesse ano. Uma delas novamente lhe chamou
atenção: não buscar novidades. Essa breve frase não significava manter o foco ou qualquer
conselho típico para quem deseja atingir algum alvo. Essa resolução, para ele, correspondia a
arrancar o mal pela raiz. Era uma resolução muito dura consigo mesmo. Ele não conseguia ficar
quieto. Se aprendesse qualquer coisa, tinha a vontade de passar aos outros. Ensinar nunca foi a sua
profissão, foi sempre o seu modo de vida. Toda avidez intelectual pretérita tinha a única e exclusiva
finalidade de alimentar esse vício. Nada mais aprender é o equivalente mais próximo dessa
resolução de 2024. Quem nada apreende, nada pode ensinar. Assim pretendia se livrar daquele
vício.
Ainda estava em abril e não era o momento de romper com as resoluções de fim de ano. Em
respeito a elas, já havia feito pausa na leitura de Hermann Hesse (O lobo solitário), de Karl Jaspers
(Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche) e de Thomas Piketty (Capital e ideologia). Ele tinha
lido Patrick Charaudeau (A manipulação da verdade) achando que esse texto, de menos de 200
páginas, não serviria de gatilho para seu vício. Na leitura teve a experiência de conviver com a
superficialidade, a de encontrar ressonância com os próprios pensamentos e, por fim, a decepção de
uma conclusão trivial do autor (A verdade está escapando de nossas mãos?). Lembrou de Pilatos (o
que é a verdade?), embora ele não fosse francês e nem linguista. Ficou com a mesma sensação de
quando leu alguns textos menores de grandes intelectuais, como Bruno Latour ou Leonardo Boff, o
que eles tinha a dizer, já disseram no passado, e depois ficaram verborrágicos.
De fato, ele aprendeu muito enquanto lia esse livro porque refletia e fazia conexões a cada
instante da leitura, hábito cultivado com esmero e aplicado até a panfletos. Recordou o postulado 7
de Ludwig Wittgenstein, do seu trabalho “Tractatus Logico-Philosophicus” ("Do que não se pode
falar, deve-se calar") e logo lhe ocorreram pensamentos em cascata e tão aparentemente diversos:
a) quando não tem o que dizer, deve-se calar; b) quem cala, poupa energia de treinamento das
inteligências artificiais; c) apenas no silêncio o sábio se revela e o insensato o emula. Mas logo se
sentiu inútil porque há um proverbio popular “a palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro”. Parar
de remoer não era o seu forte, lhe ocorreu então que a cotação da prata e do ouro tivessem se
modificado a tal ponto que gerou os milhares de influenciadores digitais ou que não existisse o
ditado “La parole est d’argent, mais le silence est d’or” na terra de Charaudeau.
Nesse ponto percebeu que não se envia para potenciais interlocutores um pensamento bruto
e mal elaborado, precisava lapidá-lo, transformá-lo numa joia. Ele sabia como fazer isto através do
feedback positivo ou negativo de amigos. Em sua trajetória já tinha travado no passado algumas
discussões assíncronas que permitiram um amadurecimento das ideias. Com nostalgia ele lembrou
de uma experiência não vivida mas apenas lida em “As Grandes Amizades” de Raïssa Maritain.
Tempos passados. Na atualidade, um emoji, as vezes indecifrável, esgota o feedback sobre
qualquer assunto. Ele tem uma convicção fatalista e secreta sobre a mudança cultural em curso.
Não se ajustará mas também não a condenará pois não existiu passado glorioso para olhar para
trás.
Ele não suportava mais a sensação de impotência que trazia tamanha agonia a sua mente.
Partiu para um recurso terapêutico controverso. Uma espécie de coma induzido para tal estado de
ânimo. Para ele a música não funcionava, ainda permitia que seu cérebro trabalhasse. Escolheu
então uma série coreana que lhe deu a letargia intelectual necessária. Gostou. Ele preferiu manter
esse fato em segredo, atrofiar sua mente não era tão crítico tanto quanto o estrago que faria aos
jovens. Para esses, ele aconselha ainda o livro. Porém, como qualquer conselho gratuito esse não
será ouvido.
Sensação
Vento
Umidade